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martes, 12 de mayo de 2015

ALGUNS CONCEITOS DA IMPROVISAÇÃO, EM TRÊS

José Sanchis Sinisterra, um grande dramaturgo espanhol que conseguiu sistematizar protocolos dramatúrgicos para escrita e criação de cenas teatrais, meu mestre de dramaturgia alguns anos atrás, falava que o teatro é matemático, assim como a música. No início eu fiquei curioso com essa afirmação, como uma poética artística pode ser matemática? Me perguntava, então comecei a levar a sério esses sistemas dramatúrgicos que Sinisterra propunha para a escrita, leve-os diretamente no corpo do ator-improvisador, chamei às condições da cena improvisada de protocolos, tal e como ele chamava as estruturas da escrita, copiei algumas das fórmulas que aprendi nas aulas com ele e fiz elas no palco, improvisando, então descobri que o mestre estava certo, o teatro é matemático.

PELAS RAMAS - HISTÓRIAS DA FRACTÂVIA
Mas não basta ter fórmulas na arte, essas estruturas, somadas umas com outras, ou divididas ou multiplicadas, nada seriam sem o impulso do desejo, sem um ator em acontecimento acreditando no que faz, em como o faz. A matemática é somente o mapa do caminho, o interessante é percorre-lo, chegar até algum lugar mesmo sem um destino final, aliás, é melhor não ter um destino final e sim um aqui e um agora, pois nossos personagens assim como a gente, vivem um presente misterioso, orgânico, assustador, fruto do nosso passado, ninguém é agora sem ter sido antes e sem querer ser depois, mas é justamente isso o que nos faz seres vivos. O homem é o único ser vivo que sabe que vai morrer, é por isso que vamos ao teatro, como diz o mestre argentino, o crítico Jorge Dubatti, ninguém vai ao teatro para ver o ator nem o personagem, vamos ao teatro para ver os estados em que eles entram, tanto ator quanto personagem. Por isso a importância do convívio teatral, da relação entre palco e plateia, eles não estão divididos, fazem parte da mesma fórmula matemática; segundo Dubatti não poderia existir teatro sem espectador, a própria palavra teatro, que vem do grego Théatron, significa literalmente o lugar de onde se mira. O espectador assiste à peça para ver acontecer algo que ainda desconhece mantendo a distância oncológica, o seja, tendo consciência de que isso que está prestes a ver é teatro e não realidade, porque no palco as coisas não acontecem como na vida real.

Porém essa afirmação também não é uma verdade absoluta, o debate está em aberto, um outro mestre chamado José Sánchez, defensor da dramaturgia pos-dramática, me disse um dia quando eu defendia a teoria de Dubatti -  pense num músico solzinho em casa tocando seu violão, ele está fazendo música? – Eu respondi que sim, lógico que está fazendo música, e ele disse – então porque o ator que está em acontecimento, interpretando, porém, sem um espectador assistindo-o, não está fazendo teatro? – Literalmente fiquei sem palavras, até agora penso nisso como uma variável certa da matemática teatral.

Não tem como ter verdades absolutas na arte, porque ela é subjetiva, é uma poética da interpretação humana, não dá para uma regra negar outra, o teatro é assim, rizomático, feito de fórmulas matemáticas que não se amanham, e a improvisação que eu considero a alma do teatro, não está longe de isso, ao contrário, essas fórmulas, dúvidas e variáveis também pertencem a ela, e nos, improvisadores, temos o dever de conhecer essa matemática mesmo que seja para nega-la logo, para tomar as nossas próprias decisões e criar nossas peças e espetáculos a partir desses algoritmos que nascem do trabalho e não da cópia do trabalho de outros.

Seguindo essa lógica matemática de Sanchís Sinisterra, pensando o teatro de improvisação como um sistema dramatúrgico em convívio, com ou sem plateia, comecei a descobrir que muitas das ferramentas que trabalhamos nos treinamentos, aulas e ensaios podem se juntar em pacotes de três conceitos que agrupados nos ajudam a entender melhor a construção da história improvisada. Vale a pena aclarar que estes conceitos estão ligados com as estruturas episódicas do teatro de improvisação, de histórias com princípio, meio e fim, independentemente do formato ou poética, embora se aproximem e sejam mais úteis nos chamados long form ou formatos longos, já que pela sua duração eles permitem explorar a profundidade a construção cénica dos personagens e das estruturas dramatúrgicas que esses personagens criam na hora.


TRÊS ESPAÇOS

1.       Teatral
É o lugar onde estamos nos apresentando, chame-se teatro, sala de aula, rua, casa, etc. ele é importante porque é o espaço que compartilhamos com a plateia. O improvisador sabe que sua relação com o público é vital para determinar o rumo da história, que o lugar onde se apresenta determina o como se apresenta. A escolha da disposição do público, que luz ou música tem ao ingresso e saída do teatro? Tem luz ou música? Tem ingresso? Tem saída? Tem público? Isso tudo permeia a peça, por isso é importante vivenciar o espaço teatral antes, durante e depois do acontecimento.

É muito comum que a relação do espaço teatral com o espaço cênico seja conectada por uma ponte: apresentador, mestre de cerimônia, narrador, folhas e canetas, um personagem, etc. que vincula à plateia com a realidade da cena, muitas vezes até criando o espaço cênico a partir das sugestões que vem do espaço teatral.

2.       Cênico
Trata-se do lugar onde acontece a cena, geralmente está no palco onde se cria a convenção do lugar da improvisação. Um formato curto ou de jogos sempre tem vários espaços cênicos, inclusive vários numa mesma improvisação, e muitas vezes, como disse antes, é a própria plateia quem sugere esse espaço: cozinha, elevador, praia, sauna, bosque, carro, etc. ele pode ser também um espaço não naturalista: a cabeça de um careca, o coração, uma lata de atum, uma nave alienígena, etc. Os formatos longos também moram no espaço cênico, frequentemente esse espaço já está determinado pelo cenário, seja este verdadeiro ou imaginário.

O improvisador acostuma entrar no espaço cênico de uma maneira literal e ilustrativa, por isso é importante treinar para domina-lo, já que ele determina a plataforma da cena, é aí que acontecem os fatos.  O ator está obrigado a acreditar nele, a viver o aqui e o agora nesse lugar, porque é ali que seu personagem nasce e morre frente aos olhos da plateia, que no final tem só duas opções: entender o espaço cênico, que é o que acontece normalmente; ou vivencia-lo, que é o que deveria acontecer, que o público acredite nesse espaço cênico tanto quanto o ator.

3.       Dramático
Quando falamos de drama parece que estamos falando de telenovela, e mesmo que essa linguagem televisiva se sirva dele como ferramenta, o conceito de drama está distante dessa outra ficção que nada tem a ver com o teatro de improvisação.

Drama significa ação, e ação refere ao ¨como¨ dentro da cena. O que acontece, por que acontece, para que acontece, são perguntas que alimentam o espaço do drama. Chamamos então espaço dramático a esse lugar interior dos personagens, ao acontecimento como tal, à ação que movimenta os objetivos dentro da história.

Vou dar um exemplo para entender melhor este espaço a partir dos outros dois: vamos supor que o espaço teatral é o Teatro Nacional, ali a companhia apresenta uma peça de teatro de improvisação onde o espaço cênico é o quarto de um hotel, nesse quarto um homem e uma mulher chegam a passar a lua de mel, mas durante a história improvisada vemos que a mulher tinha outras intenções e acaba matando o homem. Então o espaço dramático foi o espaço da mentira, da estratégia e da morte. O espaço dramático tem a ver com a situação dramática, a credibilidade que o ator-improvisador tem em relação ao outro e à ação que determina a estrutura improvisada.

Eu particularmente sinto este espaço como o mais afastado da linguagem da improvisação que conhecemos na atualidade. A Impro por exemplo preocupa-se mais pelo espaço teatral que pelo espaço dramático, parece que manter à plateia rindo é mais importante que manter ao personagem vivenciando uma situação que pode gerar riso como consequência e não como objetivo. Da mesma maneira acontece com o espaço cênico, é muito comum ver ao improvisador justificando o lugar que lhe foi dado para improvisar, incluso com uma enorme habilidade corporal e de mimica no caso dos espaços imaginários, mas é difícil encontrar improvisadores que acreditam nele, como o faz o ator que cria um personagem numa peça de teatro de texto, e sei por experiência própria que é muito difícil, mas se fosse fácil não teria graça.

Não se trata de um julgamento e sim de um convite para que comecemos a nos perguntar pela ação como principal ferramenta da nossa linguagem, pois a improvisação à que fazemos referência ainda pertence à representação teatral, não é uma poética pos-dramática, ela não destruiu a noção de drama, e mesmo nos poucos casos de transgressão dramática dentro da improvisação teatral moderna, a ação como principal suporte da cena sempre será o mais importante do nosso trabalho. Lembremos que são os impulsos e os estados o que finalmente o espectador recebe ao sair do teatro, seu espectro da lembrança mora na emoção e não na piada, mesmo nos formatos curtos devemos acreditar no que estamos fazendo e conseguir entrar com corpo e alma no espaço dramático da improvisação.


TRÊS CONFLITOS

1.       Comigo mesmo
Os personagens se definem pelas decisões que tomam, e sabemos bem que tomar uma decisão sempre gera um tipo de conflito. Ninguém está completamente feliz consigo mesmo, dia traz dia acordamos com vontade de mudar alguma coisa das nossas vidas, do mesmo jeito acontece com nossos personagens, eles não são unilaterais, têm várias faces, problemas e obscuridades ocultas.

Sabemos que nenhum personagem deveria acabar igual a como começa, porém isso é muito complicado na improvisação já que pela falta de texto não sabemos a ciência certa como é esse trajeto nem que vamos ter que vivenciar para percorre-lo com credibilidade.

Os personagens devem seguir seu próprio racionamento, a línea sincera dos seus pensamentos. Nos acostumamos à regra de não falar ¨não¨ para manter a cena sem bloqueios, mas acontece que muitas vezes esse ¨não¨ vem do personagem e não do ator. As decisões que meu personagem toma devem estar atravessadas pela minha decisão como ator, diretor e dramaturgo, mas no final das contas o importante é que seja meu personagem quem diga a última palavra.

Aconselho sempre aos meus estudantes que seus personagens, por pequenos que sejam, sempre estejam em conflito consigo mesmo. Não obstante este tipo de conflito também pode ser o foco dramatúrgico de uma cena improvisada. Se analisamos por exemplo Hamlet (de William Shakespeare) podemos ver com claridade como a peça está atravessada por um conflito de ele com ele, a dúvida e a decisão sempre estão presentes na peça, ao ponto de ser reconhecido justamente pelo monólogo que delata esse conflito individual: - Ser ou não ser, eis a questão – Pensemos então que uma improvisação pode tranquilamente estar centrada na individualidade de um personagem, e não por isso deixar de ser todo um mundo com paisagens, tramas e histórias paralelas.

2.       Com outro
Este é o tipo de conflito que fazemos de forma natural. Um improvisador iniciante sempre recorre à discussão como principal opção para propor ou contrapropor uma cena. É natural ver casais brigando, competições esportivas ou brigas entre o patrão e o empregado; esses lugares comuns vêm do que vemos dia a dia, a gente recebe informações de guerras e enfrentamentos o tempo todo desde que somos crianças, é por isso que ao improvisar este tipo de conflito é o vem primeiro nas nossas cabeças, daí a importância de nos preparar para aprender a administrar as informações e lembranças que temos na mente.

Uma das melhores maneiras de crescer como improvisadores-dramaturgos é tirando durante um bom tempo este conflito de eu com outro, especialmente ao início da nossa formação. Pelo fato de ser uma cena improvisada a briga deixa ela desconfortável e sem muitas saídas, nalguma hora alguém tem que ceder. Quando numa aula eu faço um stop numa improvisação onde aparece uma discussão e falo para algum dos improvisadores não seguir esse jogo, a história imediatamente cobra força, escapa do naturalismo banal e começa um novo caminho certamente mais interessante.

Embora este conflito também é importante, se for o personagem quem entra nele, interpretado por um ator-improvisador preparado e consciente, o caso é diferente. O improvisador profissional pode nos expor um conflito que tem com outro como uma escolha certa dentro do espaço dramático e não como uma opção comum do ator que ainda não sabe administrar essa informação.


3.       Com o entorno
As melhores cenas improvisadas quase sempre estão atravessadas por este conflito. O mundo está em contra nossa: ficamos trancados nalgum lugar, alguém que não vemos vem nos pegar, perdemos as passagens e a viagem é hoje, apaguei sem querer o relatório que tinha que entregar, meu cachorro sumiu, etc. São muitas as opções que podemos encontrar quando estamos juntos numa situação onde as coisas nos desfavorecem.

Este conflito nos convida a encontrar saídas que muitas vezes nos levam a lugares ainda mais conflitantes, é como um labirinto de acontecimentos onde todos temos o mesmo objetivo.
Pensemos por exemplo uma cena clássica de um casal que vai para uma festa, temos duas opções: o lugar comum, vê-los brigando porque ela não gosta do jeito dele se vestir, ou ele bravo porque odeia que ela demore tanto para se arrumar, uma situação clássica, todos já vimos ou temos referência disso por algum motivo, sabemos que nalguma hora alguém vai ter que ceder ou sobreaceitar, chegará um momento em que o desejo vai nos consumir, queremos que algum dos dois reaja, tome uma decisão e saia daí, ou então que os diálogos sejam profundos e cheios de descrições e evocações que nos levem a um universo paralelo a través da narrativa, mesmo assim o perigo da discussão apagar essa narrativa é alto. Também podemos optar pelo conflito que nos concerne agora, o entorno contra o casal: em lugar de brigar eles se apoiam, estão felizes pela festa, atrasados; até podem comentar o muito que ela demora se arrumando ou o mal que ele se veste, mas não é o foco da nossa cena, em lugar disso quando o casal vai sair de casa a porta não abre, as janelas também não, parece que alguém trancou eles, mas não sabem quem nem por que. Os improvisadores agora estão jogando no espaço dramático da incerteza e a urgência, sem controle do que possa acontecer, no risco, brincando com uma promessa que ninguém sabe como cumprir, mas que com certeza vamos cumprir juntos, passo a passo, no abismo da improvisação que é onde melhor se cria.

O conflito do entorno é o melhor jeito de se preparar dramaturgicamente para improvisar histórias, nas minhas aulas sempre falo disso, os estudantes compreendem a praticidade que ele lhes dá fazendo-o.


TRÊS ACONTECIMENTOS

1.       Fator imprevisível ou acontecimento surpresa
Uma cena muda radicalmente com um acontecimento, podemos ter uma ação contundente dentro da situação dramática, mas se ela não transforma nada nem ninguém então não deixa de ser uma ação. O acontecimento surge a partir dessa mudança, e um dos mais claros nesse aspecto é o fator imprevisível, o acontecimento que ninguém espera: num trem onde vemos um grupo de amigos viajando felizes, falando banalidades, esperando ansiosos chegar no seu destino, de repente se escuta uma explosão, trata-se de um vagão que foi detonado por terroristas, o ambiente muda radicalmente, o que antes era felicidade agora é medo e confusão, alguém tem que tomar uma decisão, porque depois do acontecimento vem a decisão, ela que nos diz o rumo da situação, é diferente se esses amigos são os terroristas ou se são as vítimas, dessa escolha depende o trajeto da improvisação.

O fator imprevisível deve surpreender alguém, seja ator-improvisador, personagem ou plateia, ou todos ao mesmo tempo, ele pode vir de um estímulo externo: som, luz, voz, etc. ou de um impulso interno: algo que se encontra, algo que se perde, uma transgressão ou mudança do corpo do personagem, a aparição de um objeto não esperado, etc.

2.       Ato de fala ou acontecimento falado
O texto também é ação, uma frase pode mudar profundamente uma cena, todo depende do que acontece depois, da decisão do personagem frente a essa alocução. Socialmente um ato de fala é aquele que significa algo dentro de um contexto antropológico comum, por exemplo: quer se casar comigo?; você está com câncer; estou grávida; você ganhou a loteria; eu te amo; etc. Estas frases na vida real sempre trazem uma troca de estados, uma mudança de vida, um decline da situação. Do mesmo jeito passa na cena improvisada, com a diferencia de que nela um o ato de fala pode levar a situação para um lugar que não esperamos, ou pode ser construído a partir de uma frase simples que socialmente, na nossa vida cotidiana, não tem o peso que a cena propõe. Por exemplo: acabaram as laranjas; eu te espero; eu gosto de pão; minha mãe se chama Marta; etc. Qualquer frase que seguida de uma mudança causada por ela vira um acontecimento falado.

Geralmente depois de um ato de fala vem um silêncio, ele que dá o peso à situação, dependendo do que se diz o silêncio pode gerar humor ou ser constrangedor, em qualquer caso a línea dramatúrgica da história vai virar da mesma maneira que o faria se fosse um fator imprevisível, aliás o acontecimento falado também é imprevisível a maioria das vezes, porém ele está sustentado no texto e pretende se converter numa notícia, informação, resposta, pergunta ou comentário o suficientemente relevante para transformar a história.

Pensemos nos amigos que estão no trem, a mesma situação de antes. De repente alguém entra no vagão que eles estão e grita: - Há uma bomba neste trem – A situação é parecida, de fato poderá inclusive gerar a mesma situação depois, a diferencia é que neste caso o acontecimento foi falado, não teve um vagão explodindo ainda, tal vez nem exploda, mas o fato da informação já faz a situação declinar o suficiente levando os personagens a tomar uma decisão e mudar radicalmente a história.

3.       Promessa ou acontecimento planejado
Mesma situação, mesmo trem. Um dos amigos se levanta e vai ao banheiro, vemos ele entrando misteriosamente e trancando a porta, é nosso foco, saca uma bomba e ativa-a no vaso sanitário, programa-a para detonar daqui a cinco minutos, sai do banheiro e volta ao seu grupo, em aparência nada muda, mas nosso olhar já não é o mesmo, a tensão aparece como protagonista do espaço dramático. A decisão, que vem sempre depois do acontecimento, neste caso pertence aos atores-improvisadores; o como vão resolver esse jogo através dos subtextos, ações e diálogos, os porquês e os paraquês, convertessem em o principal objetivo dos dramaturgos-improvisadores.

O acontecimento planejado está diretamente relacionado com a plateia como sujeito ativo da ação teatral, as premissas e promessas que construímos na cena improvisada geram um acontecimento na ironia dramática entre personagem e público: um segredo; uma decisão não dita; uma ação não feita, mas pronta para sê-lo; um encontro perigoso prestes a acontecer; uma trama compartilhada conosco como público, etc.

Este tipo de acontecimento chama-se de planejado porque a diferencia do ato de fala e o fator imprevisível, sabemos que ele vai acontecer, mesmo que não aconteça, somente o trajeto entre a promessa e o resultado já revela uma transformação radical da estrutura dramática. Pensemos por exemplo em Esperando Godot (de Samuel Becket) ali os personagens esperam o tempo todo alguém que nunca chega, mas a espera já faz acontecer, é ela um importante foco da dramaturgia. Agora pensemos nas múltiplas opções que temos dentro de uma improvisação para que um acontecimento planejado entre como parte e promessa do personagem, da situação e por consequência da estrutura dramática da história.


TRÊS STATUS

O status é a posição que um sujeito assume frente a uma ação, uma situação, ou um outro sujeito. Em cena o status constitui-se como um ponto vital para o desenvolvimento das improvisações, todos os personagens por pequenos que sejam, tem um status

O mestre Keith Johnstone, a quem atribuímos o nome de Impro à técnica que serve de base na improvisação moderna como resultado e não como processo de criação, expõe no seu livro titulado com o mesmo nome: Impro, Improvisação e Teatro, um capítulo completo sobre o status, nos ensinando muito bem duas maneiras de aborda-lo: social ou situacionalmente. Não obstante quando falamos de Teatro de Improvisação esses dois caminhos precisam de um terceiro que insira ao ator no espaço dramático, que motive o personagem e o convide a gerar conflito consigo mesmo, é assim como vamos falar então também do status emocional.

1.       Status Social
Antecedendo ao status social existe o status antropológico que nos define desde um ponto zero como seres humanos no planeta terra, considerando a geopolítica, a sociedade, a religião, o sexo e as demais condições nas que cada um de nós nascemos. Condições que são irrefutáveis no momento do parto, mas que podem mudar consideravelmente no transcurso da vida. Quando nas minhas aulas começo expor o status como ferramenta do ator-improvisador, muitas vezes faço o seguinte exercício: todo mundo vai para uma línea no fundo da sala, como se fossem começar uma corrida, somente dá um passo à frente quem tiver uma resposta afirmativa nalguma das perguntas que vou formular. Quem é homem? Quem é heterossexual? Quem é branco? Quem nasceu na Europa? Quem é batizado? Quem ao nascer já tinha casa própria? Quem mora num país sem guerra? Quem tem papai e mamai? Quem estudou em escola privada? Quem nasceu numa família com carro? Quem já saiu do seu país? Quem fala inglês? etc. Depois de fazer essas perguntas quem estiver mais à frente tem mais status social, porque antropologicamente falando as condições em que nasceu fórum favoráveis. Não é igual nascer na Colômbia que nascer na França, como também não é igual ser filho de profissionais do que ser filho de trabalhadores sem escolaridade. Essas incidências às quais fazemos parte como seres sociáveis neste planeta, determinam nosso status social.

Também é importante entender que nosso olhar frente a esse status não é vertical, não temos juízos de valor, ninguém tem culpa de nascer numa família rica ou pobre, simplesmente é uma condição social da qual fazemos parte. Nosso olhar é horizontal, reconhecemos a diferencia como objeto de estúdio para a construção dos nossos personagens. Tanto assim que as vezes no mesmo rumo do exercício anterior, peço para o grupo voltar atrás e faço novamente o exercício mudando as perguntas e levando-os para o estado do status emocional do qual falarei mais para frente.

É inevitável pertencer a um determinado status social, ele se define pelo entorno: a profissão, o trabalho, o dinheiro, o poder, as jerarquias, etc. Está ligado às mudanças da vida: ser promovido, ser demitido, se casar, se separar, ter empregados, ser empregado, ganhar, perder, mandar, obedecer, etc. Por isso é importante determinar o status social dos nossos personagens, porque ele serve como plataforma para conhecer o estado em que eles se relacionam com o mundo em sociedade, aspecto importantíssimo para o improvisador que conhece seu personagem passo a passo ao mesmo tempo que o constrói. Começar pela forma é um bom jeito de criar um personagem, e o status social determina claramente essa forma em termos de relação e vínculo com o outro.

Alguns exemplos de jogos de status social que implicam duas pessoas numa mesma situação, porém cada uma num extremo da gangorra: patrão e faxineira; rei e bufão; médico e paciente; mãe e filho; ator e fã; motorista e passageiro; Deus e anjo; etc.

2.       Status situacional
Entrar no palco com um status social claro não indica que o personagem se mantenha sempre no mesmo estado em referência aos outros e à situação. Tudo depende da ação em acontecimento. O status situacional determina a cor da cena, seu movimento leva os personagens de um lugar a outro gerando prazer e interesse na plateia. Nem sempre o empregado tem menos status que o empregador, socialmente sim, mas podem existir muitas situações nas que a inversão de status apareça, por exemplo numa situação onde o empregador precise da ajuda do empregado, ou do seu conselho, ou da sua verdade. Do mesmo jeito acontece com qualquer um.

Ter mais ou menos status social não indica ter mais ou menos status situacional. Um exemplo: três empresários de alto status social estão prestes a serem promovidos, porém eles sabem que somente um deles terá o cargo. A discussão em que eles entram claramente os levará a uma luta de quem tem mais status social e merece sentar no escritório da gerencia, somente o mais capacitado poderá entrar. A briga começará por descrever qual tem mais estúdios, ou domina mais línguas, ou tem facilidade de se transportar, de mandar, de tomar decisões que impliquem demitir pessoal ou até fazer escolhas que somente alguém preparado pode fazer, etc. no final quem mais status social tiver entra, os outros dois ficam. A situação é simples, ela está caminhando na mesma direção, tanto status social como situacional fazem o mesmo trajeto.

Pensemos nesta outra situação, os mesmos três atores agora são três mendigos que estão na rua na frente de uma lanchonete, os três sabem que somente um deles será chamado para comer as sobras de um lanche que alguém deixou cima da mesa, os outros dois terão que ficar sem comer. Com certeza trata-se de uma briga de status situacional que vai na direção oposta ao status social, o seja, será chamado a comer aquele que estiver na pior das condições, merece mais o lanche o mendigo mais necessitado, ao contrário da outra situação, embora a luta continue sendo por alcançar o status social mais alto.

Uma das situações mais divertidas é ver um personagem de status social alto num status situacional baixo, é por isso que resulta engraçado ver aqueles vídeos de modelos de alta costura caindo na passarela; ou ver uma meleca saindo do nariz do presidente da república num ato público. Os personagens cómicos mais icónicos do cinema quase sempre entram nesse jogo de status, por exemplo Charlot (Charles Chaplin) é um vagabundo que se esforça por ter bons modais e a dignidade de um cavaleiro, um status social baixo que quer ser alto, as situações em que ele entra fazem quase sempre dos personagens burgueses: ricos, policiais, patrões, etc. sofrer as consequências das suas travessuras, baixando o status situacional deles batendo nalgum lugar, correndo detrás dele, caindo, etc. Do mesmo modo acontece com Mr. Bean, Cantinflas, Os três Patetas, Chaves, Chapulín Colorado, e muitos outros mais que brincam nesse balancim da gangorra que Jonhstone nos ensinou que sempre deve estar em constante movimento de arriba para baixo. Nenhum personagem fica quieto num único status situacional.

3.       Status emocional
Se existe o espaço dramático, o conflito interior e o esperpento do personagem, também existe um status que valoriza esses estados. A emoção como motor da ação está atravessada por um estado que difere da posição social ou da situação em que nos encontremos. Vamos voltar para o exercício do status antropológico que falamos ao expor o status social. O grupo em línea no fundo da sala, somente dá um passo à frente quem tiver a resposta afirmativa a alguma das perguntas: Quem estuda ou trabalha no que sempre quis? Quem está felizmente apaixonado? Quem anda de transporte público ou bicicleta por convicção e não por obrigação? Quem é homossexual assumido? Quem mora num lugar gostoso? Etc. Quem ficou mais na frente tem um status emocional, aqui e agora, mais alto. E é importante fazer um foco nesse aqui e agora, pois o status emocional está estreitamente ligado ao presente, eu não necessariamente sinto a mesma coisa que senti ontem porque eu não sou o mesmo que era ontem.

A emoção que acompanha as minhas decisões como dramaturgo-improvisador também são importantes, porem o status emocional pertence aos sentimentos do meu personagem. Eu posso estar numa situação de status social onde sou um vendedor numa entrevista de emprego, estou precisando do trabalho, a situação está dada, é clara, mas no fundo eu não quero mais trabalhar como vendedor, eu quero ser cantor. Durante a entrevista a mulher que está me entrevistando se sente atraída por mim, o status situacional dá uma virada, agora eu estou encima, tenho um status social baixo, um status situacional alto e um status emocional incômodo.

Nem sempre a plateia percebe o status emocional, muitas vezes ele pertence ao esperpento, fica como motivador do improvisador e pensamento do personagem. Está relacionado com o desejo, com a necessidade e o prazer. O status emocional depende do que está no interior, vem de dentro e não de fora, porém pode ser revelado nalgum momento gerando inclusive um acontecimento para a cena. Por exemplo, pensemos numa cena onde duas mulheres estão esperando seu filho sair da escola, elas começam a falar deles como qualquer mãe faria, começa uma luta de status social alto, quem tiver o melhor filho está no topo. O tempo passa, era para as crianças ter saído quarenta minutos atrás, ninguém abre a porta da escola ou atende o telefone, a situação muda, agora temos duas mães desesperadas falando da fragilidade dos seus filhos, do perigo que podem estar correndo lá dentro trancados fazendo sei lá o que. O status emocional está sendo atravessado pelo status social, embora tem muito mais foco, é isso o que nos interessa ver agora. Na situação nenhuma das duas mães liga para a polícia, descobrimos que ambas estão sendo procuradas pela lei, nova inversão de status, acabou a luta entre elas, estão juntas, motivadas pelo status emocional, decididas a entrar no lugar seguindo seus instintos de proteção. Derrubam a porta, uma delas até tinha uma arma, aponta, dispara sem parar. Nesse momento chegam os ônibus da escola do passeio que estavam fazendo com os estudantes, ambas mães esqueceram desse passeio, os filhos descem, a polícia chega, eles vêm como suas mães são levadas na viatura, estão felizes de ver as suas mães sendo levadas presas, sua emoção está ligada à sua imaginação, minha mãe na cadeia é massa, pensa uma criança. É uma cena completamente motivada pelo jogo de status emocional.

Não tem como desligar a emoção da situação e da ação, isso quer dizer que o status emocional sempre está relacionado com o status social e situacional.